O Poeta Augusto dos Anjos
O poeta do desencanto Augusto dos Anjos foi o primeiro poeta brasileiro a desnudar consciente e sistematicamente a realidade por meio de seus versos. Foi um precursor das ideias modernistas quando rompeu com a noção de que a poesia só deve expressar o que é lírico e agradável Maria de Fátima Gonçalves Lima Especial para o Jornal Opção No início do século 20, a literatura brasileira sofreu uma série de influências, tanto do momento histórico nacional, quanto das novas ideias vindas da Europa. Estas influências não foram capazes, todavia, de desvincular a literatura das duas primeiras décadas do nosso século, das Escolas do fim do século 19. Daí a dificuldade de intitular esse período. Alceu Amoroso Lima chamou-o de pré-modernismo, o termo mais usado. Outras sugestões: época nacionalista, época eclética. O pré-modernismo, que não chega a constituir propriedade de uma “escola literária”, designa genericamente esse período, no qual nem tudo era conservadorismo e alienação; é época nacionalista, porque é essa fase que surge uma literatura empenhada na interpretação da realidade nacional; é época eclética, enquanto acolhe diversas estéticas ao mesmo tempo, nenhuma dominante, vindas principalmente do século anterior, agora rotuladas com o radical neo: neossimbolismo, neoparnasianismo. Isto sem esquecer as novas ideias que estavam surgindo. Dentro desse novo período anunciado no final do século 19, surge Augusto dos Anjos (1884-1914), poeta sui generis. Sua vida é assinalada por acontecimentos decisivos na história do mundo e do Brasil. Na história mundial, é a época das disputas internacionais pelo domínio imperialista dos territórios africano e asiático. Essas disputas desembocaram na 1ª Guerra Mundial (1914 — 1918). Na história brasileira, é o momento de maior revolução social e econômica que o Brasil conheceu: Abolição da Escravatura (1888), seus desdobramentos e a Proclamação da República (1889). Literatura conservadora e literatura renovadora Foram poucos os literatos que observaram criticamente a realidade da época. A maioria repetia o que se fazia na Europa e cultivava o beletrismo, frequentando cafés (pontos de encontro dos intelectuais) e buscando prestígio social por meio da literatura. Repetiam-se os padrões da estética parnasiana e simbolista e preocupava-se mais com a maneira de dizer do que com o que havia de ser dito. Dessa forma, o que se produziu em literatura pouco ou nada tinha a que ver com a realidade social brasileira. Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, fugindo à regra, foram escritores que viram com olhos críticos a realidade nacional, construindo uma obra renovadora. Na poesia, destacou-se Augusto dos Anjos, um poeta bastante original dentro da tradição brasileira. De certa maneira, seus poemas são diferentes de tudo que os antecedeu e os seguiu. Para se compreender a posição da poesia de Augusto dos Anjos na literatura brasileira, é preciso dizer algumas palavras acerca das tendências poéticas da época em que ele produziu seus versos, isto é, de 1900 a 1914. A primeira tendência, denominada parnasianismo, foi inspirada na publicação francesa “Parnasse Contemporain”, que reunia poemas de diversos autores e evocava o Parnassus, na Grécia. As exigências parnasianas, do ponto de vista formal, estão ligadas, de um lado, à organização, à composição do poema; de outro, ao rigor da frase, à precisão e à clareza: fala-se na nudez, riqueza e sobriedade da imagem, semelhante à arquitetura do templo, sem deixar perceber os andaimes do edifício. É uma poesia, sobretudo plástica: seus modelos são a pintura, a escultura e a arquitetura, entre as artes maiores, e, entre as menores, a arte do cinzelador, do lapidário. Os poetas parnasianos são extremamente cuidadosos quanto à linguagem dos poemas e quanto ao respeito às regras da métrica: número de sílabas, rimas e posição das sílabas. Um dos ideais da estética parnasiana era o uso de uma linguagem culta, correta, exata. Como os prosadores do estilo realista, os poetas parnasianos não desejam se envolver com o tema tratado; pretendem manter a impessoalidade científica. No parnasianismo são frequentes os textos descritivos, porque os poetas preferem trabalhar no campo do concreto, das coisas visíveis. A intenção dos poetas parnasianos é fazer a arte pela arte, isto é, a arte é vista como um fenômeno em si. Os parnasianos não escrevem para reformular a sociedade, mas para criar, para fazer arte. Dessa forma, os textos parnasianos não apresentam problemas pessoais do autor ou da sociedade em que ele vive, pois o sentido de se fazer arte está na própria arte. A segunda tendência, conhecida como simbolismo, foi um estilo de época nascido na França e que atuou nas literaturas ocidentais nos últimos anos do século 19. Ao contrário do parnasianismo, o simbolismo era fundamentalmente irracionalista. Na origem, inspirava-se em doutrinas místicas medievais ou orientais, muito em voga no fim do século 19 e início do século 20, primeiro na Europa, depois em todo o mundo. Pode-se entender essa atitude como uma crítica de fundo espiritualista à certeza científica, à pretensão da ciência dita positiva de resolver todos os “enigmas do universo”. Entre nós, o simbolismo nunca conseguiu alcançar o prestígio e a influência do parnasianismo. O maior poeta simbolista brasileiro, Cruz e Sousa (1861-1898), teve a maior parte de sua obra publicada apenas depois de sua morte e um reconhecimento literário muito tardio. Hoje ninguém discute a superioridade de sua poesia, comparada com a dos parnasianos. Para os escritores do estilo realista, a objetividade era um dogma. Mas os simbolistas retomam o subjetivismo romântico e colocam novamente os interesses subjetivos do artista em primeiro lugar. A realidade objetiva não interessa mais; o homem volta-se para uma realidade subjetiva, retomando um aspecto abandonado desde o romantismo. O “eu” passa a ser o universo, mas não o “eu” superficial, emotivo e piegas do romantismo: os simbolistas vão à busca da essência do ser humano, daquilo que ele tem de mais profundo e universal — a alma. Daí a sublimação tão procurada pelos simbolistas: a oposição entre matéria e espírito, a purificação, por meio da qual o espírito atinge as regiões etéreas, o espaço infinito. Os simbolistas evocavam os temas espirituais, não concretos, misteriosos, a sugestão, o sonho. Ao contrário dos simbolistas, os realistas valorizavam um mundo mais concreto. Stéphane Mallarmé, poeta simbolista francês, disserta que: “Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema, que consiste em ir adivinhando pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou inversamente, escolher um objeto e extrair dele um estado de alma, através de uma série de adivinhas”. A concepção do simbolismo sobre a realidade e a arte suscitou fortes reações na sociedade positivista da época. Os simbolistas foram chamados de malditos ou decadentes. Estes simbolistas, porém, desprezaram o prestígio social e literário e seguiram suas ideias dominando as imagens vagas, nebulosas, incertas. Desta maneira, abandonaram o culto da razão, que era próprio dos parnasianos, e voltaram-se para a intuição, que permitia perceber a verdade instantaneamente. A poesia simbolista procura aproximar-se, sobretudo da música. Os versos buscam as sonoridades que resultam na repetição de consoantes (aliterações) e de vogais (assonâncias). A inovação simbolista foi sufocada pela euforia capitalista, pelo avanço científico e tecnológico. Nesse contexto, surge um período de prosperidade, de acúmulo de prazeres materiais denominados “Belle Époque”. A burguesia aplaude os versos que cantam a beleza e a perfeição. O espírito do belo suplantou o simbolismo, que foi desvalorizado, mas abriu caminho para novas correntes artísticas do século 20, principalmente o expressionismo e o surrealismo, que também se preocuparam com a expressão das zonas inexploradas da mente, do inconsciente e da loucura. Neste período de transição, surge Augusto dos Anjos que começou a escrever sob a influência do parnasianismo (1900); porém, seus versos mais maduros aproximam-se do simbolismo. Esse poeta fez, por meio de sua poética, um retrato do período transitório entre o século 19 e 20. Retratou seu tempo, sua época, pontuada de códigos literários velhos e novos e uniu numa só obra as mais variadas estéticas literárias. Dessa maneira, o poeta pré-modernista representou com mestria este período entre séculos marcadamente sincrético e movimentado. Componentes da poesia de Augusto dos Anjos Augusto dos Anjos é um poeta excepcional, incomparável na literatura brasileira. Sua obra é a soma do realismo, naturalismo, parnasianismo, simbolismo e de outros ismos da segunda metade do século 19 e início do século 20. Por ser considerado o poeta do “mau gosto”, do escarro, dos vermes, do feio, do grotesco, do hediondo, sua obra apresenta traços do expressionismo (movimento vanguardista surgido na Alemanha em 1910) sem que, no entanto, tenha conhecido os preceitos dessa tendência da vanguarda europeia. Os temas, igualmente, são inquietantes e expressionistas: a decrepitude dos cadáveres, os vermes, a podridão, as substâncias químicas que compõem e decompõem o corpo humano, a prostituta, o sêmen, a ingratidão, a traição, o pior da existência, as dores do mundo. Seus textos chocam pela agressividade do vocabulário, pela interpretação dramática e angustiante da matéria, da existência, do homem, da vida, do cosmos e de tudo. A poesia de Augusto dos Anjos expressa a dor de ser dos simbolistas; e o negativismo, os anseios e angústias existenciais dos realistas. Sua sensibilidade está toda voltada para a dor universal. Os estudiosos já apontaram, aí, ecos da doutrina budista, retomada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer que, em termos simples, defende que a vida é sofrimento e este pode ser abolido com a cessação dos renascimentos e absorção do indivíduo no nirvana. A poesia de Augusto dos Anjos reflete a filosofia e a ciência do final do século 19. Para este poeta não há Deus nem esperança, há apenas a supremacia da ciência; e o ser humano, as energias que o geraram, as substâncias, a matéria de que ele é feito (células, sangue, carne, instinto), tudo é arrastado para a decomposição, para a podridão, para o mal, para o fim e para o nada. Porém, o “nada” decantado por Augusto dos Anjos não representa apenas o fim da vida, mas também, outra face do ser que nos lembra as palavras de Michel Zeraffa quando diz: “O nada é a outra face do ser, e a morte a outra face da vida, esta não pode ser recusada, nem evitada”. Dessa maneira, de acordo com o poeta, fatalmente o ser humano, desde o momento da epigênese, está condenado às dores da existência e fadado ao nada. Augusto dos Anjos não nega que o homem é um ser que caminha para a morte: “o verme este operário das ruínas / Que o sangue podre das carnificinas / Come, e à vida em geral declara guerra”. O ser vivo é condenado à decomposição da matéria. A poesia do autor de “Eu” é marcada pela união de duas concepções de mundo distintas: de um lado, a dor cósmica, que busca o sentido da existência humana; de outro, a objetividade do átomo, a experiência físico-química. Augusto dos Anjos é um poeta que não se filiou a nenhuma escola, mas sua poesia tem a objetividade, o positivismo e o pessimismo dos realistas; o cientificismo e o determinismo dos naturalistas; uma preocupação com a forma quase que parnasiana; o esoterismo e ontologismo dos simbolistas, além de nuances expressionistas e outros traços estéticos que anteciparam a modernidade. Sua poesia antilírica, antipoética, isenta de sentimentalismo, abriu discussão sobre os conceitos da “boa poesia” e preparou o terreno para a grande renovação modernista. Augusto dos Anjos utilizou uma poesia formalmente trabalhada, em linguagem cientificista-naturalista e, ao mesmo tempo, assinalada por uma popularidade acima das expectativas. O que mais aproximou o autor de “Eu” da grande massa de leitores foi sua temática em torno das incertezas do século 20, do medo da guerra, sua angústia em face de problemas e distúrbios pessoais e seu pessimismo schopenhauereano, por isso foi incluído numa modalidade de poetas chamados, há um tempo, cientificistas e filosofantes. Dentro desta ótica reveladora do homem e do mundo, Augusto desnudou um universo de imagens degradantes e hediondas relativas à cidade. O poeta vivendo no início do século 20 presenciou o fenômeno das grandes aglomerações humanas da cidade que, além de seu crescimento normal, começava a inchar-se com as populações rurais que procuravam melhores condições de vida, nos centros mais populosos. Dessa forma, assistiu ao movimento migratório que teve graves consequências nos anos seguintes e que se estende aos nossos dias. O “Eu” (1912), único livro publicado em vida por Augusto dos Anjos, é um conjunto de 58 poemas. São sonetos e poemas mais longos, escritos quase todos em versos rimados e decassílabos, com uma única exceção: “Barcarola”, composto em versos de sete sílabas (redondilha maior). Depois de seu livro de estreia, publicou uns poucos poemas em jornais, no Rio de Janeiro e em Leopoldina, Minas Gerais. Estava preparando um novo livro, mas morreu antes de completá-lo. Só em 1920, seis anos depois de sua morte, saiu uma coleção de seus últimos trabalhos. A poesia de Augusto dos Anjos exige atenção, conhecimento e sensibilidade. Seus textos são únicos, originais e conduzem os leitores a um mundo de verdades doloridas que os otimistas ocultam. Expõem, ainda, sua postura em relação à vida e a sua concepção revela seu profundo pessimismo e niilismo diante de uma sociedade formada por feras e que leva o homem a ser, também, fera. O pensamento desse poeta pré-modernista tem afinidade com as ideias de Schopenhauer quando afirma: “O inferno no mundo excede o ‘Inferno de Dante’, no ponto em que cada um é o diabo do seu vizinho; há também um arquidiabo superior a todos os outros, é o conquistador que dispõe milhares de homens em frente uns dos outros e lhes brada: ‘Sofrer, morrer, é o vosso destino; portanto fuzilem-se, canhoneiem-se mutuamente!’ E eles assim procedem.” É um ponto de vista pessimista, negativista sobre a realidade, sobre as dores do mundo. Em seus textos, o poeta como um filósofo, acorre para uma severa realidade com nuances de negativismo, desesperança e niilismo. O tom pessimista, pesado e triste chega ao clímax quando o poeta apresenta o antilírico, quando faz referência à decomposição da matéria, ou quando doutrina sobre a falta sinceridade dos seres humanos e alerta que não é possível acreditar numa boa ação, no amor, na virtude, no bem. O mundo é dos maus. Augusto dos Anjos foi o primeiro poeta brasileiro a desnudar consciente e sistematicamente a realidade por meio de seus versos. Foi um precursor das ideias modernistas quando rompeu com a noção de que a poesia só deve expressar o que é lírico e agradável. O poeta pré-modernista procurou expor seus textos por meio de uma forma inusitada, usando um vocabulário científico e filosófico ou apenas erudito, combinado com algumas expressões coloquiais. Esse estilo não foi bem aceito pela sociedade quando o poeta publicou sua obra, depois, ganhou o gosto popular — quer seja pelo cientificismo, quer pela filosofia ou erudição, quer seja pela temática. O certo é que foi popularizado, recebendo o seu devido reconhecimento. Augusto dos Anjos é considerado parnasiano por uns e simbolista por outros. Parnasiano, em virtude de sua preferência pelo soneto, que executava com perfeição e rigor. Simbolista, pela sugestão, pelo pessimismo, pela preocupação com a psiquê e o decadentismo. Porém, nenhuma dessas designações é suficiente para descrever a generalidade de sua produção, uma vez que foi o mais sincrético e original de toda a poesia brasileira. Daí, seu enquadramento na amplitude do pré-modernismo ser o mais compatível com a sua autonomia e genialidade. A poética de Augusto dos Anjos merece consideração pela densidade temática, pela riqueza linguística, pela técnica, pela forma e, enfim, por uma realização artística excepcional, única.
Maria de Fátima Gonçalves Lima é pós-doutora em Literatura.